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COMENTÁRIOS A RESPEITO DO LIVRO “PANDEMIA E AGRONEGÓCIO”, DO CIENTISTA NORTE-AMERICANO ROB WALLACE

 

  • INTRODUÇÃO

No livro a “Revolução dos Bichos”, também traduzido como “A fazenda dos animais”[1], o escritor inglês George Orwell nos deixou, com todo seu gênio criativo, uma história um tanto engraçada: em uma granja de suínos existia um porco chamado “Major”, o qual estava à beira da morte e decidiu conclamar o restante dos bichos da granja a se libertarem da opressora condição de suas vidas, reduzidas às rações controladas e aos limites físicos de abafados galpões.

Os porcos revolucionários, então, criaram uma teoria (chamada “animalismo”), dividiram tarefas, arquitetaram estratégias e partiram impiedosamente para cima dos seus malditos inimigos: os seres humanos!

A história de Orwell é uma metáfora (comparação implícita) dos regimes totalitários que existiam à época da escrita da obra, lançada em 1945, período muito conturbado na história do mundo. Tudo bem, mas o leitor se pergunta por que raios estou falando de um livro que não é o mencionado no título… chegarei lá!

Meses atrás soube da existência de uma obra chamada “Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência”, do pesquisador norte-americano Rob Wallace[2]. O livro foi recentemente traduzido para o português, em uma edição muito bonita, pela Editora Elefante. Na intenção de melhor compreender as causas que envolvem esta crise de saúde que vivemos, logo adquiri e comecei a ler o livro, ainda mais animado por saber que o autor estuda o agronegócio, assunto tão caro a nós brasileiros.

Logo no início da leitura, foi inevitável: lembrei-me imediatamente da história da “Revolução dos Bichos”, de George Orwell, conforme explicarei adiante.

Peço desculpas aos biólogos de plantão pelos possíveis erros na utilização de termos técnicos da área, mas ouso dizer que a tese central de Rob Wallace é a de que pequenos organismos geradores de doenças (patógenos) reagem, por si próprios, a certas condições ambientais/ecológicas, gerando situações ofensivas à saúde humana. Assim explica o pesquisador:

Os patógenos, no entanto, não são meros figurantes, golpeados pela maré da história humana. Eles também agem por vontade própria, com o perdão do antropomorfismo. Demonstram agência. E, em virtude de suas transformações evolutivas, forçaram o agronegócio a sentar à mesa de negociação (p. 30).

Afirma o autor, então, que o agronegócio atual, imerso num sistema capitalista extremamente avançado, cria mecanismos aptos ao desenvolvimento e “revolta” de certos patógenos, por exemplo o que acontece nos sistemas de produção maciça de carne suína (sistema vertical de terminação, etc.). Rob Wallace explica, pois, que “nosso mundo está cercado por cidades de monoprodução de milhões de porcos e aves apinhados lado a lado, em uma ecologia quase perfeita para a evolução de várias cepas virulentas” (p. 66).

Adiante, Rob Wallace afirma que esta situação toda “é motivo de sobra para acabar com a bizarra prática cultural de confinar milhares de animais consanguíneos sob o mesmo teto. No entanto, desvendar a globalização do agronegócio intensivo, já há mais de cinquenta anos em andamento, exigirá mais do que a percepção de que foi uma má ideia” (p.67).

Ou seja, o pesquisador quer nos alertar de que, se não se mudar o sistema de produção maciça de animais, principalmente aves e suínos, há grande chance de os patógenos se desenvolverem ainda mais, por exemplo com os novos tipos de influenza (que ele lista na página 66 do livro), até mesmo no tocante aos desdobramentos do Sars-CoV-2 (coronavírus), que é abordado na parte 08, páginas 527 e seguintes.

É, leitor, só há um jeito de concluir esta introdução: se Rob Wallace estiver certo em suas análises, está ocorrendo uma “revolução dos bichos”, aliás, uma “revolução dos vírus”.

 

II – MOTIVOS PARA LER O LIVRO

Sou defensor da tese de que os advogados da área do agronegócio, e até mesmo produtores que tenham interesse nos estudos, têm o dever de estar a par das discussões ideológico/culturais que envolvem a área, afinal, é no terreno da cultura e das produções acadêmicas que se desenvolvem as ideias que um dia ou outro prevalecerão no senso comum, e até mesmo nas consequências econômico/sociais daí resultantes.

Isto não quer dizer que os cidadãos, no caso os produtores rurais e empresários do agro, sejam meros joguetes de intelectuais e dos grandes estrategistas da geopolítica. Ao contrário, o agronegócio tem se mostrado um campo de produção altamente desenvolvido e às vezes até mesmo alheio às crises que atingem outros setores. Porém, é preciso estar atento às mudanças de paradigma, muitas vezes sutis, que afetam profundamente a vida do ser humano contemporâneo.

Neste cenário humano de alta complexidade (conforme explica Edgar Morín), é preciso ter uma “cabeça bem-feita”, momento em que o estudo e o hábito da leitura aparecem como instrumentos imprescindíveis.

O que pretendo demonstrar é que, se a tese de Rob Wallace a respeito da produção maciça de animais ganhar alta relevância acadêmica, o que parece que está acontecendo, não tardarão a aparecer propostas de mudança na gestão e funcionamento dos sistemas de produção de carnes, notadamente suínos e aves.

Isto afeta, em muito, várias cidades goianas, as quais têm como uma de suas principais atividades, ao lado da produção de soja e outras culturas, a criação de animais em sistema de terminação.

Em Rio Verde e região, por exemplo, o número de produtores que possuem contrato de integração com agroindústrias é enorme. Esses locais de confinamento – as granjas – são, na opinião de Rob Wallace, os lugares propícios à proliferação e desenvolvimento de patógenos.

 

III – ADVERTÊNCIA: O LIVRO É ALTAMENTE POLÊMICO

Rob Wallace está longe de ser um pesquisador “neutro”, preocupado somente com suas amostras e tubos de ensaio. Muito além disso, Wallace utiliza de muita ironia, referências literárias, e não tem o menor receio de expressar abertamente suas posições ideológicas.[3]

E, vale dizer, o autor do livro não é nada otimista e propõe uma mudança radical no modo de produção alimentícia. Rob Wallace chega a dizer que a fabricação de vacinas e o controle na proliferação das doenças decorrentes destes patógenos não é suficiente para resolver o problema, pois, na visão dele, enquanto perdurar este modo de produção, multiplicar-se-ão os patógenos e as doenças nos seres humanos (ele fala disso ao explicar o “ebola”, nas páginas 483/484).

No capítulo intitulado “Fazendeiros colaterais”, Rob Wallace tece uma aguda crítica ao que no Brasil denominamos “contrato de integração vertical” (Lei n. 13.288/2016), ou seja, esta espécie de “moderno arrendamento” (expressão do autor do livro), no qual o produtor rural (integrado) pode ser utilizado como massa de manobra para os interesses da agroindústria (integradora), inclusive para se livrar de responsabilidades pela proliferação das doenças – é esta a visão de Wallace (páginas 485/490, bem como 535).

Ou seja, para alguns estudiosos, não será nada espantoso se, futuramente, as indústrias e os granjeiros tiverem que alterar substancialmente suas atividades, com vistas a evitar a proliferação de patógenos – essas mudanças podem ocorrer, por exemplo, no tempo de criação e abate de animais, de acordo com as informações das páginas 451/453 do livro.

O ponto mais delicado reside, a meu ver, numa certa “repugnância” que Rob Wallace demonstra no tocante ao agronegócio, bem como nas alternativas que ele propõe para resolução do problema. Diz ele que se precisa “recuperar paisagens rurais e florestais e recursos hídricos locais que o agronegócio transformou em zonas de sacrifício para o capital global” (página 546), sendo necessário, dentre outras coisas, “adotar muitas das práticas cotidianas de povos indígenas e pequenos agricultores” (página 547).

Seria esta uma saída razoável, possível, justa?

 

IV – CONCLUSÃO BREVÍSSIMA

Apesar da excentricidade e radicalidade de algumas das ideias expostas no livro, a obra de Rob Wallace se mostra um tanto importante para a compreensão dos rumos que o agronegócio tomará daqui em diante.

Ademais, independentemente das origens ainda incertas do coronavírus, bem como dos interesses geopolíticos que estão envolvidos, a presente situação exacerbou as discussões a respeito da relação entre o ser humano e o meio ambiente (a natureza em geral), mostrando-se imperioso delimitar com precisão os limites da exploração humana e evitar, na medida do possível, o abuso ideológico do discurso ambientalista.

Espera-se que o conhecimento, a pesquisa e as inovações tecnológicas sirvam ao bem da humanidade, à melhoria das condições de vida. Assim, Rob Wallace não deixa de ter razão ao dizer que, quando a produção de alimentos extrapola em muito a sua finalidade precípua, que é o bem da família e da sociedade em geral, as consequências ambientais tendem a ser desastrosas.

Retomando a introdução, me recordo de que a Revolução dos Bichos, do livro de George Orweel, no final fracassou, e depois de muitas desavenças, brigas e mortes, os bichos da granja concluíram que: “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.

 

[1] O título “A fazenda dos animais” foi adotado apenas recentemente, a partir da tradução do escritor Paulo Henriques Brito. A mudança ocorreu porque, segundo alguns críticos, o título “revolução dos bichos” fora até então utilizado como “arma ideológica” em prol do liberalismo econômico e do anti-comunismo, o que, em tese, deturparia os posicionamentos políticos do próprio Orwell. Para maiores informações: https://www.google.com/search?q=a+fazenda+dos+animais+george+orwell&oq=a+fazenda+dos+anima&aqs=chrome.4.0j46j0j69i57j0l4.6230j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8.

[2] A indicação partiu do Promotor de Justiça João Porto Silvério, em evento realizado pela Universidade de Rio Verde, em setembro de 2020.

[3] Há notórias referências a Karl Marx e Slavoj Zizek (páginas 137, 201…), por exemplo. Wallace, de mais a mais, encerra o livro com uma frase de origem “zapatista”, ou seja, oriunda de Emiliano Zapata, revolucionário mexicano que pregava, dentre outras coisas, a repartição estatal das terras e da produção agrícola.

 

Vinícius Pomar Schmidt. Advogado, inscrito na OAB/GO sob o número 45.896. Graduado pela PUC/GO. Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público; e em Direitos Humanos, Democracia e Cultura, pela Universidade Federal de Goiás.

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